CONTO DE SEMANAS - Emoções de Sexta-Feira

 


Há pouco mais de um ano, Lúcia brincava na rua correndo atrás de bola, subindo em árvores, ficando até tarde jogando taco com as outras crianças, em uma variedade de brincadeiras que envolviam basicamente correr, e algumas risadas altas,  além de algumas reclamações de vizinhos mais velhos que não gostavam da balbúrdia. Quando voltava para casa, suas chinelas quase sempre estavam arrebentadas e seus pés embarrados. Sua irmã mais nova, Clara, nesse mesmo período, não saía de casa; ficava sentada observando pela janela a irmã correr. À noite, no pequeno quarto onde ficavam suas camas separadas, Clara pedia uma narração detalhada de tudo o que Lúcia havia feito na rua e de todas as brincadeiras. Às vezes, Lúcia perguntava por que a irmã não saía; Clara apenas respondia que não estava com vontade e ia dormir.

Nas sextas-feiras, as meninas iam da escola direto para casa, em vez de irem para a casa das amiguinhas, pois era dia da visita do pai, que havia ido embora já fazia pouco mais de um ano, as buscava com o carro novo e sua namorada Soraia, sempre sentada orgulhosa no banco da frente. As meninas achavam Soraia alegre, com suas bochechas coradas e sempre arrumada — o oposto do que viam em sua mãe, que sempre teve um toque melancólico e, do ano passado para cá, mal trocava de roupa.

Nesse dia, Clara se sentia animada; talvez por ser a mais nova, sentia muita falta do pai em casa. Achava que Lúcia brincava lá fora para não pensar muito na partida dele, mas nunca falavam sobre isso. Lúcia só conversava sobre brincadeiras e estava acostumada a não falar sobre assuntos sérios; na verdade, nunca houve muita conversa dentro de casa, mesmo quando o pai ainda morava com elas.

Próximo da hora do pai chegar, Lúcia apareceu com os pés sujos de barro e uma sacola de supermercado com uma muda de roupa, caso o almoço fosse em algum lugar importante, como o pai costumava fazer. Clara, arrumada com um vestido rodado e sapatos brilhantes cor-de-rosa, sentiu a euforia tomar conta quando viu o carro do pai virar a esquina com Soraia sorridente ao lado. Imediatamente olhou para a porta e viu a mãe abanar  e fechar a porta em seguida — talvez não quisesse ver o ex-marido com a outra —, mas Clara a enxergou espiando pela sombra das cortinas. As meninas subiram no carro e partiram.

O dia estava ensolarado, e a casa onde moravam o pai e Soraia tinha um jardim bem cuidado e espaço para correr. Lúcia aproveitou o dia brincando com as crianças da rua; Clara passou o dia dentro de casa com Soraia. Cozinhavam juntas enquanto o pai fazia suas marcenarias na frente de casa. Estava sendo uma sexta-feira alegre e divertida.

Na hora de partir, o pai beijou Soraia, que preferiu ficar em casa, ela entregou às meninas um mini-bolinho cheio de confeitos dentro de uma embalagem transparente com uma fita amarela, que foi saboreado ao longo do caminho.

Assim que o carro estacionou em frente à casa, o pai olhou para as duas, antes que saíssem correndo como sempre faziam, e lhes disse:

— Meninas, vocês já estão grandes agora e podem entender algumas conversas de adultos. O papai vai contar algo para vocês. 

As meninas se entreolharam, curiosas. Clara não disfarçou o sorriso, pois imaginou que o pai diria que voltaria para casa.

— Claro, pode contar! — disse ela, sorrindo.

— O papai vai dar para vocês um irmãozinho! A Soraia vai ser mamãe! Então, o que me dizem? Estão felizes?

As meninas permaneceram olhando para ele como se estivessem congeladas. Nenhuma reagiu. O pai continuou:

— Como a família da Soraia é do interior, vamos precisar morar lá por um tempo, sabem? Para ajudar com as coisas quando o bebê chegar. Mas não se preocupem, assim que der o papai vem ver vocês — e para conhecerem o novo irmãozinho. 

O silêncio tomou conta do carro tornando o ar pesado e mais calor do que estava lá fora.

— Quando você vai embora? — perguntou Lúcia, quebrando o silêncio do carro.

— Bom… sabe como é, filhota. Precisamos ir logo, antes que a Soraia comece a ficar com mais enjoos e invente mais desejos. Por isso estou conversando com vocês. Minhas meninas já estão grandinhas e podem entender, não é mesmo? Saímos amanhã cedo, e a mudança vai logo em seguida — disse ele, tentando sorrir para amenizar.

— Ok. Boa viagem e… bom neném. — Lúcia saiu do carro com a sacola de roupa que nem tinha usado, já que haviam almoçado em casa, e puxou Clara pela mão. — Vamos, Clara, a mamãe está nos esperando. Bateu a porta do carro e levou a irmã para dentro de casa, enquanto Clara olhava para trás, vendo o pai dar a partida e virar a esquina. 

Uma semana depois, na sexta-feira, Clara abriu os olhos e lembrou das palavras do pai. Olhou para a cama de Lúcia e viu a irmã sentada, enrolada na coberta, olhando pela janela. Aquela semana tinha sido assim: Lúcia não saía para brincar antes da escola; apenas ficava ali, enrolada, observando a rua. Clara decidiu descer rápido para pegar o café da manhã antes de a mãe deitar. Naquela semana, a mãe deixava os lanches prontos e subia sem se despedir, voltando para a cama de forma automática.

Ao chegar na cozinha, a mãe arrumava as lancheiras. Olhou para a filha nos olhos, como se percebesse naquele instante que fazia dias que não tinha contato real com nenhuma delas. Fazia o que precisava fazer e ficava tranquila ao escutar as vozes das meninas.

— Você está bonita, Clara. — Abaixou-se na altura da filha, tocando sua bochecha.

— Você também, é uma mamãe muito bonita. Respondeu Clara com doçura.

— Não… você sempre foi bonita. Puxou o seu pai. Desviou os olhos do olhar da filha para que ela não percebesse a ponta de tristeza.

Clara erguendo a mãozinha delicada no queixo da mãe obrigando a olhar para ela.

— Se você se arrumar e colocar um vestido vermelho também vai ficar bonita. Podemos sair para comer sorvete.

— Você acha, minha filha? Então vamos fazer isso, eu vou me trocar e você me espera, está bem? Vamos chamar a Lucinha também.

— Eu posso ir na rua brincar enquanto você se arruma?

— Você quer ir na rua brincar? — perguntou a mãe, surpresa.

— Hoje eu quero. Posso?

— Claro que pode. — respondeu ela, curiosa com a atitude inesperada da filha.

Clara correu para a rua e logo se enturmou com as outras crianças. A mãe subiu as escadas e, em seu quarto, abriu o roupeiro. Deparou-se com o espelho da porta esquerda — que vinha evitando há algum tempo. Ali estava ele, refletindo sua aparência: Uma camiseta velha e manchada, calça de moletom, meias com pantufas e um casaco longo, muito provavelmente do ex-marido. Olhou para o cabelo. Tocou as pontas — sem corte havia muito tempo. Tocou o rosto e sentiu que tinha envelhecido décadas. Colocou uma mecha atrás da orelha e observou as roupas penduradas: As lantejoulas pretas de um vestido curto, a seda de um longo vermelho, a coleção de tomara-que-caia com estampas de florzinhas e abelhinhas. Escutou a risada de Clara e a viu pela janela correndo e rindo com as outras crianças. Seus olhos se encheram de lágrimas; um soluço rompeu o silêncio da casa. Abraçou-se às roupas quase entrando dentro do roupeiro e chorou copiosamente, sentindo o gosto salgado das lágrimas. Permaneceu ali por um tempo que parecia uma eternidade.

Aos poucos, com movimentos lentos, levantou-se. Passou as costas da mão nos olhos úmidos, fechou a porta do roupeiro, apertou o casaco de lã junto ao corpo e caminhou até a cômoda. Abriu a primeira gaveta e pegou uma foto virada para baixo: Ela com as meninas dois anos antes, alegres, abraçadas, todas de vestido vermelho — a cor favorita do ex -marido. Observou seu sorriso com batom vermelho, olhou novamente para a gaveta, lá estava o batom, da marca Chanel, sua favorita. Abriu o batom ainda segurando a foto, removeu o lenço que cobria o espelho da cômoda e, mesmo com os olhos inchados do choro pesado, desenhou os lábios com o antigo batom.

Olhou para si mesma, guardou a foto no mesmo lugar, removeu o lenço do espelho por completo, fechou o casaco novamente — como se pudesse protegê-la — e foi ao quarto de Lúcia.

Encontrou a menina sentada na janela, ainda enrolada na coberta. Chegou perto, sentou-se ao lado dela e passou o braço sobre seu ombro. Ficaram ali, em silêncio, observando Clara correr e rir com as outras crianças. 

Lúcia abraçou a mãe e chorou, tal qual a mãe havia feito minutos antes.

Enquanto Clara corria, sentia o vento no rosto — e sabia que, se corresse rápido o bastante, as lágrimas iam secar antes de cair.


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