CONTOS DA SEMANA - Memórias de Quinta-feira
A casa de Rita era calma e silenciosa, quase entediante. Sua rotina era repetitiva: Acordava às cinco horas da manhã, meditava, tomava seu café, passeava com seu cão da raça pug — que recebeu o nome de Biscoito — e se dirigia ao trabalho, que também não era nenhuma diversão. Trabalhava na biblioteca central da cidade de São Paulo; ficava lá até umas cinco e quinze e voltava para casa. Jantava, quase sempre um sanduíche, lia um pouco e ia deitar. Seu sono era quase pontual: em torno de dez horas, adormecia.
Morar sozinha era o sonho de Rita, que acabou se realizando de uma forma trágica. A casa em que ela cresceu era barulhenta, sem ordem — um caos total. Seus pais davam festas, recebiam amigos de outros lugares e quase nunca ficavam sozinhos, os três. Havia sempre crianças correndo e brincando por todo lado, acompanhadas de pais como os seus, que ficavam dançando e rindo. Quando ia para seu quarto deitar, apesar de não terem o hábito — nem sequer frequentarem locais religiosos — Rita juntava suas mãozinhas, fechava os olhos e pedia, sem saber direito para quem, que um dia pudesse ter sua casa e viver em ordem e silêncio. Um infeliz acidente de carro, quando ela tinha dezenove anos, resultou na morte dos pais, que estavam voltando de uma viagem ao Peru. A casa e toda a poupança deles ficaram para sua única filha, Rita. Depois de se formar em Literatura, a menina vendeu a casa e foi morar em São Paulo — o lugar mais barulhento do país. Porém, o condomínio fechado e distante dava uma impressão de silêncio.
Já eram 14h40 daquela quinta-feira, e Rita se sentia especialmente agitada, talvez por perceber que, mais uma vez, o tempo iria mudar, se formando uma tempestade daquelas. Ainda tinha dificuldade com as mudanças climáticas da cidade, mesmo depois de tantos anos morando ali. Na saída, uma chuva forte — como ela imaginava — trancou o trânsito, atrasando a todos.
Após duas horas de um longo caminho, em que ensopou seus pés e seus cabelos ficaram grudados na cabeça, enfim chegou ao condomínio. Logo na entrada havia um caminhão de mudanças, com as portas abertas e alguns móveis do lado de fora, encapados com plástico. Olhou ao redor e não viu os novos vizinhos nem trabalhadores do caminhão; os móveis pareciam ter sido deixados ali. Caminhou em direção à sua porta, com a chave na mão. Respirou, e mais uma vez olhou para trás. Sabia que não iria conseguir ficar em paz sabendo que alguém poderia perder seus móveis — conhecia sua ânsia de ajudar as pessoas. Guardou a chave na bolsa e foi caminhando entre os móveis. Teve uma sensação estranha de já ter visto aquele sofá bege, com flores bordadas em cor de vinho; aquela estante lhe parecia muito familiar.
Começou a entrar na casa, já que a porta estava aberta, avisando através de um: “Olá? Tem alguém aí?”. Escutou uma música que vinha dos fundos. As casas ali tinham a mesma estrutura, então sabia que, atravessando a sala e a cozinha, daria no pátio. Caminhou enquanto cumprimentava em voz alta. As portas das janelas batiam com o vento e a chuva. Rita percebeu que, quanto mais próximo do pátio, mais alta ficava a música. Era uma trilha antiga, que lhe parecia conhecida, mas não lembrava direito.
Ao chegar à porta, viu uma menina de uns sete anos, com cabelos cor de mel e cachos que iam até a cintura, enfeitados com tranças, fitas e algumas penas penduradas nas pontas. Seu vestido não parecia novo, mas era colorido. Ela girava, sorrindo. Rita percebeu que a menina se sentia alegre só por estar ali: girando, sendo criança, brincando na chuva. A menina logo percebeu que era observada e estendeu a mão para Rita, em um convite para brincar. Impulsionada pela animação da criança, Rita largou a bolsa, segurou a mãozinha pequena, depois a outra, e ficaram girando, olhando para cima e sentindo a chuva cair no rosto. Rita começou a sorrir, escutou a risada da menina e lembrou de como gostava de girar na chuva de mãos dadas com seu pai e sua mãe. Mesmo com tanta gente ao redor, eles sempre davam um jeito de fazê-la rir.
Um grito atravessou suas memórias. Uma mulher, vinda de dentro da casa, gritava um nome ainda não audível naquela distância. Aquela voz, aquele timbre — Rita sentiu que já tinha escutado antes. A menina, que antes estava alegre, ficou pálida e foi para trás de Rita se esconder, reconhecendo a voz que chamava. A mulher gritava com tanta raiva que Rita não conseguia entender o nome. Quando chegou à porta do pátio, a mulher se mostrou: vestia um vestido amarelo rodado, com mangas longas.
— Anitta! Saia dessa chuva e vá tirar essas coisas ridículas do cabelo! Já lhe disse que fica parecendo uma galinha com essas penas penduradas!
Rita, atônita, tentou falar algo, mas sua voz não saía. Viu a menina tentar fugir da mulher brava, mas, antes de correr, ela tirou a pena azul do cabelo e colocou na mão de Rita.
— Não deixe ela ver… ela detesta enfeites coloridos.
Então correu para o fundo do pátio. A mulher veio correndo na direção de Rita, com fúria nos olhos. O que parecia impossível estava diante dela. Quando a mulher estava quase em cima de Rita, ela conseguiu gritar:
— Vó?! Não!!
A mulher atravessou Rita como se fosse fumaça. No momento em que Rita olhou para trás, viu a menina correndo e gritou:
— Mãe!! Anitta!!
Com um estouro que parecia uma bomba explodindo, Rita deu um salto da cama, com a testa suando. Olhou para os lados: estava em seu quarto. A chuva lá fora seguia caindo forte. No relógio ainda eram 23 horas daquela quinta-feira minimamente estranha. Sentou-se na cama, tentando entender o que havia acontecido. Não lembrava como tinha chegado em casa. Decidiu levantar para beber água. Biscoito roncava como se nada pudesse lhe afetar, nem sonho nem realidade. Rita invejou um pouco a paz do seu pug sem preocupações.
Caminhou até a cozinha, bebeu água lentamente, lavou e guardou o copo — como sempre fazia. Olhou a sala em tons pastéis, retornou para o quarto, levantou as cobertas e viu ali, na cama, a pena azul que estava no cabelo da menina alegre. Rita pegou a pena, olhou seu rosto no espelho da parede ao lado e prendeu a pena em seu cabelo. Deu um sorriso ao seu reflexo. Deitou-se e pegou o celular, abrindo o bloco de notas para digitar um lembrete para o dia seguinte: “Redecorar a casa com enfeites coloridos”. Virou para o lado e pegou no sono novamente.
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